terça-feira, 12 de junho de 2007

Porque Defendo a Liberdade de Expressão

Lembro de uma vez, no setor no qual eu trabalhava, no Porto de Santos, havia um colega de trabalho que era de uma igreja evangélica. Conversávamos, eu, ele e mais dois colegas cristãos sobre um artista conhecido que dizia que sacrificava animais em oferenda para demônios, por conta de seus trabalhos musicais. Este colega, diante disso, disse a seguinte pérola: ‘Isso é culpa da nossa Constituição, que permite essa liberdade religiosa. Isso deveria ser proibido!’. No mesmo instante, arregalei os olhos, estupefato com a frase e lembro apenas de ter dito isto: ‘Se não houvesse essa liberdade religiosa, você estaria rezando para Nossa Senhora da Aparecida’.

Muitas pessoas não percebem que toda liberdade tem um preço. Para que uma pessoa possa gozar de alguma liberdade, deve haver um correspondente equivalente às outras pessoas, o que cria uma diversidade de pensamentos e idéias e atos. A liberdade carrega consigo também a responsabilidade, pois o julgamento e a condenação apenas são possíveis em relação a quem possui a condição de escolher livremente. Sem essa condição, não é possível determinar valor para o ato, impossibilitando o julgamento.

Com a possibilidade de escolha, o ser racional tem a possibilidade de se posicionar da maneira como bem entender. Inclusive, podendo negar o bem, agir contrário à moral, dizer o que pensa, ainda que seu pensamento seja reprovável segundo os valores estabelecidos.

Pela liberdade, os homens têm escolhido se afastar de Deus, viver como nos tempos de Sodoma e Gomorra, sendo “amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus...” (2Tm 3.2-4).

Por isso, seremos contra a liberdade? Absolutamente não!

Em primeiro lugar, ainda que desejássemos o seu fim, isso não seria possível. A liberdade é inerente ao ser racional. Orígenes, pensador cristão do século IV, já intuía isso: “... os que afirmam ser o homem incapaz de agir por decisão própria, negam-lhe a natureza racional, equiparando-o ao animal. Onde há uma razão, ali também há liberdade. Pois pensar racionalmente significa julgar” (extraído do livro História da Filosofia Cristã, de Philotheus Boehner). A racionalidade está intimamente ligada à liberdade. Não é possível a existência de uma sem a outra. Se é possível raciocinar, isso pressupõe a liberdade para o fluxo do pensamento; se é possível a liberdade, é porque há a condição de julgar, raciocinar.

E, ainda que não houvesse essa premissa lógica da racionalidade com a liberdade, o verdadeiro cristão deve entender que a liberdade é um pressuposto inerente à proporia fé cristã. Deve-se considerar que Deus criou o homem livre, seja por vontade própria, seja por um impulso lógico, segundo o que foi dito acima. De qualquer forma, essa liberdade é indiscutível e, só por isso, ser contrário a sua existência, de qualquer forma, é pensar diferente de Deus. Se a liberdade inicia no próprio Deus, seguir um caminho diverso é negar um princípio divino, ou seja, negar o próprio Deus.

Além disso, devemos atentar para a ordem dada por Jesus a seus discípulos: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). Como compreender o cumprimento deste comissionamento, sem o mínimo de liberdade? É verdade que o mundo ainda vivia longe do entendimento da possibilidade da expressão individual totalmente livre do pensamento. E se analisarmos, sem muito esforço, percebemos que isso apenas criava embaraços à pregação. Sendo assim, concluímos que a falta de liberdade é contrária à própria pregação do Evangelho. E mesmo que argumentem que tal tolhimento ajudou o fortalecimento da fé, essa ajuda não foi direta, mas conseqüência oblíqua dos fatos, não podendo, com isso, ser argumento em defesa da falta de liberdade. A perseguição aos cristãos, no início da era cristã, fortaleceu muito a fé daqueles homens, mas quem poderá dizer que tal perseguição era justa e devida? A ausência de liberdade, por muitas vezes, pode fortalecer a fé de comunidades, mas jamais será um pressuposto moral para o crescimento destas mesmas comunidades.

Pregar é falar para outros sobre algo. Falar indica liberdade de pensar e de se expressar. Falar para outros pressupõe essa possibilidade. A liberdade, quanto mais ampla, mais facilitadora dessa pregação. Se é facilitadora, então, é favorável à pregação e, por isso, deve ser defendida.

Portanto, o cristão, por todas as razões citadas acima, deve ser um defensor da liberdade de expressão, da maneira mais ampla possível. Liberdade que tem seu preço. Liberdade que nos depara com muitas coisas que chegam a corroer nosso ser intimamente. Que nos faz enxergar a corrupção humana, em seu nível mais profundo. Que desperta em nós a revolta por causa da depravação e imoralidade. Que nos faz, muitas vezes, querer inclusive a sua extinção, fazendo-nos crer que isso solverá todas as mazelas humanas. Mas quem poderá obstruir o pensamento? E o homem mal, cerceado em seus atos e palavras, deixará de ser mal?

Sou cristão, luto pela liberdade. Liberdade de pensamento e expressão, ampla e irrestrita (limitada apenas naquilo que constituiria crime, ou apologia a este). Não confundo a maldade humana com sua liberdade. O homem não é corrupto por causa da liberdade. Esta apenas permite que saibamos disso.

Fabio Blanco