quinta-feira, 4 de junho de 2009

Um Acordo Tácito

Quando alguém não se distingue quem é, vendo em si mesmo vários, ou outro qualquer, já não pode ser digno de confiança. E se a confiança se caracteriza pelo lançar-se nos braços de alguém que, se pressupõe, confiável, como confiar em quem não sabe nem mesmo quem é, portanto, não pode sequer confiar em si mesmo?
Ouço de modernos intelectuais que possuimos uma consciência fragmentária. Como ouvi do antropólogo Roberto da Matta, numa palestra filosófica na Tv Cultura, o qual disse, mais ou menos, que uma pessoa sabe que não é a mesma quando está em seu escritório e quando vai dormir com sua esposa. Dizendo isso, ele parecia confirmar sua própria tese, segundo a qual exercemos papéis sociais, cada um deles sendo um fragmento de nossa consciência.
Porém, isso me soa muito estranho, pois não condiz com a percepção que tenho de mim mesmo. Apesar de reconhecer que exerço papéis sociais, parece que tenho plena convicção que são apenas papéis, os quais exerço sem perder, um segundo sequer, a unidade de minha consciência. Ainda que eu esteja em uma audiência ou interpretando uma canção ou pregando em um púlpito, quem está lá sou eu e não apenas parte de mim. Se alguma interpretação há que me diferencia do meu agir cotidiano, esta representação é plenamente consciente e termina no exato momento do fim do exercício do papel. Como um ator que no teatro interpreta Napoleão Bonaparte, mas quando volta ao camarim sabe exatamente quem é, deixando o imperador para trás. Aliás, se ele continuasse sendo Napoleão, ou se Napoleão fosse um fragmento de sua consciência, poderíamos enviá-lo diretamente para o manicômio.
Isso, no entanto, me parece apenas um reflexo da mentalidade moderna. Estetas narcisistas, cultores dos deuses que desejam (ou imaginam) ser, tendo a oportunidade de se enxergarem como personagens destacados, ainda que de uma sociedade decadente, não se resignariam em ser apenas o indivíduo comum, simples e mortal. Seus papéis sociais precisam ser agregados a quem eles são, a fim de que seus jeitos, trejeitos e posturas não sejam interpretados apenas como teatralidade de um suburbano metido à besta, ou de um playboy alienado, mas como a real face de alguém que tem alguma importância na comunidade. E assim, multiplicam-se personagens sociais que se alimentam mutuamente, em um armistício velado, pelo qual, as partes, tacitamente, concordam em não fenderem as máscaras uns dos outros.
Esta, para mim, é a figura do inferno: uma existência inferior, cercada de existências inferiores que não aceitam quem são, nem onde estão. Talvez, ainda, apenas o retrato do grande hospício no qual vivemos: homens e mulheres que acham que são quem não são esquecendo realmente quem são.