segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Esquizofrenia espiritual


Apenas aqueles que encaram a realidade como ela é, com suas feições, muitas vezes, ameaçadoras, podem, de verdade, saber o que é a vida e como vivê-la. Somente aqueles que não procuram desculpas para suas mazelas, mas são maduros o bastante para compreenderem que nem tudo são flores, podem saber como continuar, sem o risco de se perderem no meio do caminho.


Muitas pessoas, inclusive fervorosos religiosos, têm experimentado, após um ápice espiritual, a queda. São homens e mulheres que até algum tempo eram o exemplo de espiritualidade e fé, mas hoje são apenas uma sombra de seu passado glorioso. Com alguma experiência podemos perceber que isso ocorre com certa freqüência, sendo até mesmo previsível em alguns casos. Histórias se repetem e fatos se assemelham, com o presente repetindo o passado, numa ciranda implacável.

Talvez, haja diversas razões para que isso ocorra, porém, creio ter identificado uma delas, que, ao menos aos meus olhos, tem se mostrado absurdamente severa com seus sequazes.
Todo aquele que se deixa envolver por ela, acaba se abandonando a si mesmo, enxergando a vida com lentes sujas, tornando imperceptível a diferença entre o real e a fantasia. Esse fenômeno, por não conseguir encontrar um nome mais adequado, eu o chamaria de esquizofrenia espiritual.

A esquizofrenia é um transtorno psicológico pelo qual o doente sofre com alucinações e manias persecutórias, ouvindo vozes e assumindo personalidades alheias. Há, no esquizofrênico, uma dissociação da realidade, na qual o que é real e o que é imaginário se confundem, tornando a vida do enfermo muito difícil. O que mais afeta o esquizofrênico, porém, não é o imaginário, não é a sua criação mental, em si mesma, mas a percepção esporádica que ele tem da dissociação dessa imaginação com o real. Sem abrir mão do que acredita ser realidade, o que sofre de esquizofrenia acaba por se retrair em seu mundo, fechando as portas para a plena comunicação com o externo.

Quem conhece pessoas esquizofrênicas sabe que elas não são absolutamente alheias a realidade. Se comunicam, reconhecem as pessoas, muitas trabalham e tem alguma vida social. Porém, há, em suas vidas, uma alternância tal entre realidade comum e aquela criada por sua mente, que, em determinado momento, com o avanço da psicose, se torna impossível qualquer convívio.

Quando observo a vida de muitas pessoas, as quais não são esquizofrênicas patológicas, percebo que, de maneira muito parecida com a doença, elas tendem a criar um mundo imaginário, com seus próprios personagens e realidade, alternando isso com a realidade externa que se apresenta implacável. Mergulhados em uma fé dissociada da realidade, olham para a vida com uma distorção de imagem que, mais cedo ou mais tarde, cobrará delas este erro.

A fé é crer em algo que não se vê, porém não em algo que não existe. Ter fé é, dentro de uma compreensão da realidade, acreditar que existe algo além do que se pode enxergar e saber que essa realidade invisível é tão real como aquela que se pode ver. No entanto, ter fé não é uma fuga, não é um escape involuntário do real. O homem que tem fé compreende e acredita naquilo que o convenceu. Ele foi tocado mental e emocionalmente por uma verdade que não estava ao seu alcance antes, mas que se revelou para ele de maneira clara. Não é a imposição de uma realidade imaginária, mas uma dialética evidente. É assim pois ninguém possui fé (ao menos uma fé sadia e bíblica) sem ter compreendido suas razões. Diferente do esquizofrênico, o homem de fé sabe porque crê, no que crê e, principalmente, quais as implicações desta crença no mundo no qual vive.

Ocorre que sempre houve, dentro da religião, um fenômeno que me atrevo a chamar de esquizofrenia espiritual. Apesar do risco da má compreensão, acho que a denominação cabe ao que observo correntemente. Como na doença, muitas pessoas se encontram entre dois mundos: o imaginário e o real, confundindo-os e não tendo a capacidade de discerní-los. No caso da esquizofrenia espiritual, o fiel, após a absorção de tanto conteúdo de fé, promessas bíblicas mal interpretadas, esperanças vazias e desejos íntimos, acaba criando uma estrutura de vida que se baseia na expectativa da realização de milagres e soluções que, na verdade, jamais acontecem, também de explicações que não satisfazem qualquer mente minimamente lúcida. Esse mundo imaginário é alimentado, principalmente, por um amálgama de esperança e torpor, os quais aliviam a dor do presente e fortalecem para a seqüência da vida.

Essa imaginação, porém, não é o saudável escape transcendental que lança o homem ao conhecimento de uma realidade além da matéria sensível. É, sim, uma criação mental que, na verdade, substitui o espiritual. Não é espiritualidade, é imaginação; não é fé, é vã esperança; não é transcendência, chega a ser loucura!

A verdadeira fé compreende a realidade, percebe suas dificuldades, compreende, também, o transcendente, entende suas implicações sobre o visível e se deixa atuar na verdade, sem substituir o real, apenas se incorporando a ele como uma realidade antes desconhecida, mas que passou a ser percebida.

Não há nisso qualquer conteúdo imaginário. Se há alívio, se dá ele pela própria realidade da fé, não dela em si mesma, mas pela realidade que ela aponta. A força que a fé traz ao homem reside na compreensão da realidade de maneira mais ampla. Não há substituição do mundo sensível, mas compreensão, um entendimento que alcança além do que normalmente se percebe e isso, sim, acalma, fortalece e revigora.

O esquizofrênico espiritual acredita que seu mundo é um mundo à parte, alheio à realidade comum. Crê que os problemas que afetam o restante da humanidade não podem lhe afetar, que sempre haverá uma solução pronta e acabada para tudo, graças a sua fé. Ele também segue criando promessas imaginárias, que acredita se cumprirão invariavelmente. Se convence, ainda, que todas as suas dificuldades têm um propósito óbvio e definido, que nada ocorre sem uma resposta clara dos motivos e que toda turbulência é apenas um teste divino. Ele vai se afastando da realidade da vida, se apegando mais e mais a seu sistema espiritual e, sem perceber, se vê não mais acreditando nas mazelas que afetam sua vida, nas limitações de seu ser e na vulnerabilidade de sua existência. Se apegam, definitivamente, às suas criações e passam a conduzir suas vidas completamente em torno delas.

Invariavelmente, porém, ocorre que tais criações começam a ficar demasiado dissociadas da realidade e, por não serem esquizofrênicos de fato, os esquizofrênicos espirituais começam a perceber que há algo errado em suas vidas. Sua fé não se cumpre, suas crenças não o sustentam, seu deus não o protege, sua esperança não o salva. Mais cedo ou mais tarde acabam cedendo à realidade e desmoronam de seus castelos de areia. Nesse momento culpam a Deus, à igreja, aos irmãos, como se estes fossem os causadores de suas decepções. Apenas não percebem que seus castelos foram construídos por eles mesmos.

O resultado disso é um esfriamento tão forte que, se não mata espiritualmente a pessoa, torna-a tão cínica que nada mais tem valor espiritual. De esquizofrênico passa a realista extremo, crendo apenas nos olhos, cético em relação a qualquer manifestação misteriosa e transformado em um religioso ritual.

Diante desse perigo, a única prevenção que enxergo é a defrontação, pelo crente, com a realidade como ela é. Sem medo e sem desculpas, encarar a vida com suas dificuldades e soluções, tristezas e alegrias, tribulações e alívios. Ver o real como ele se apresenta, compreendendo que a solução de Cristo foi dada sobre esta realidade. A própria salvação é algo dessa realidade, e não um mistério além da compreensão. Os ensinamentos de Deus são sobre esta vida e não passos a iniciados que suplantaram a realidade, deixando-a para trás.

O alívio da fé real talvez não seja tão imediata como a da fé esquizofrênica, mas, sem dúvida, é muito mais sólida, além de trazer uma solução eterna. Por muitas vezes, a fé real parece nos deixar à mercê da realidade, nos abandonando à própria sorte. Mas digo isso, com toda a certeza: o que ela faz não é nos abandonar, mas nos preparar para o dia difícil. Se a fé é uma compreensão do transcendente, é essa compreensão que vai nos sustentar no dia da tribulação. Se, ao invés disso, ela for uma substituição do real, quando este se apresentar com todas as suas garras, não haverá fé que subsistirá.

Conhecereis a verdade e ela vos libertará. Não há verdade maior do que a própria realidade e essa realidade, da qual Deus é o princípio e o fim, compreendida em seu aspecto mais amplo, material e espiritual, que entendida faz do homem comum um fiel, um servo de Cristo, à espera do dia da redenção!