sábado, 30 de julho de 2011

Os males da vida dupla

Um princípio elementar para a restauração de uma alma abatida é o resgate da verdade em sua vida. Muitas vezes, as pessoas se acostumam com um cotidiano cercado de ilusões, de falsidade, de máscaras. Desde muito cedo somos acostumados a representar papéis na sociedade, a fim de bem convivermos com as pessoas. Acontece que esses papéis, invariavelmente, não refletem nossa verdadeira personalidade e entram em conflito com o que nós percebemos.
O que ocorre, então, é uma tensão entra a realidade percebida e a personagem vivida, até chegar um momento no qual a verdade já não está mais tão disponível como antes. Isso acontece por causa do vício na falsificação, que todos nós desenvolvemos por uma obrigatoriedade social.

Desde muito tempo, a própria história das sociedades está alicerçada nas mais odientas mentiras e falsas representações. São posições, papéis e personagens que se desenvolvem pelo uso da artimanha, da tática, da política e da mentira. São homens e mulheres que se dividem em duas ou mais vidas: uma pública, voltada para a boa convivência e a criação e manutenção de uma boa imagem pessoal e outra privada, esta sujeita aos maiores problemas, pois na vida particular, entre os familiares mais íntimos, é que a verdadeira personalidade de alguém, como seus defeitos, seus medos e vacilos se apresenta mais claramente.

Agora, imagine o quanto deve fazer mal para uma pessoa ser alguém dentro de sua casa e outra pessoa completamente diferente na rua. Sem considerar a questão moral, pense apenas nos conflitos que uma pessoa assim deve passar, tendo que sustentar uma imagem que não corresponde a sua verdadeira personalidade. São elogios que ela sabe não serem justos, relacionamentos baseados na superficialidade dos contatos mais fugazes, esforços absurdos para tentar agradar os outros e medos desenvolvidos pelo constante receio de ser desmascarado.

De uma maneira ou de outra todos nós estamos sujeitos a esse tipo de vida. Não apenas por culpa nossa, mas por causa da imposição que o meio no qual vivemos nos impõe. Há uma cobrança nem tão velada para sermos pessoas legais, agradáveis, que falem coisas que não incomodem e que não tragam nenhum problema para ninguém. Há, ainda, uma ditadura estética, que vai além da forma exterior, mas que exige, também, uma acomodação aos modelos politicamente corretos de hoje.

Tudo isso cria uma terrível tensão dentro de nosso ser. Acaba ocorrendo um conflito sério entre a personalidade real e a personagem inventada. O pior é que a segunda normalmente leva vantagem. Isso porque é muito difícil conviver conscientemente nessa tensão. Ninguém pode se manter razoavelmente saudável tendo que controlar qual das personalidades, a verdadeira ou a falsa, vai se manifestar em cada momento. Por isso, uma solução comum, por incrível que pareça, é a mitigação cada vez maior da personalidade verdadeira, em favor da personalidade criada. Isso porque é na personalidade verdadeira que se encontram os nossos defeitos e fraquezas. Então, melhor mais conveniente é deixar que a personalidade criada exatamente para agradar seja aquela que vai se sobrepor.

É por causa disso que vemos tantas pessoas que têm tanta dificuldade de deixar seus papéis sociais, mesmo nos momentos mais informais. Quem não conhece um advogado que parece que sempre está no juri, mesmo quando entre os amigos ou um pastor que parece estar sempre pregando, mesmo nos momentos de maior descontração? Isso é uma forma de proteger-se, de não deixar a verdadeira personalidade se manifestar, de não deixar que as pessoas vejam suas mazelas.

De outra maneira, mas que confirma o que eu estou dizendo, quem não conhece homens que no seio da família são dóceis e amorosos e na roda de amigos parecem leões raivosos (como o contrário disso também), ou mulheres que parecem santas dentro das igrejas, mas durante a vida cotidiana apenas se preocupam com as questões mais banais (quase sempre relacionada à vida alheia)? Essas são vidas que ainda possuem algum pouco de realidade, mas acabam sofrendo com a duplicidade, que é o primeiro passo para a loucura. Isso porque, com o costume da vida dupla (ou tripla, em alguns casos), a falsificação se impregna na alma do indivíduo, que já passa a viver dessa forma como se fosse a coisa mais normal do mundo. Essa alma se suja na lama da falsidade e necessita realmente de um completa purificação (Tg 4.8).

Ocorre que a mentira cobra seu preço, e o resultado é o desenvolvimento de uma personalidade esquizofrênica, que já não tem mais capacidade de identificar o que é verdade e o que não é. Neste momento, essa vida está pronta para viver o chamado mundo de Satanás, que é o pai da mentira (Jo 8.44), e o criador da ilusão. Se a pessoa não consegue mais saber o que é real, está à mercê do poder diabólico que, facilmente, a conduzirá pelos caminhos mais distantes de Deus.

O reino do diabo é o reino da mentira, mas não apenas da mentira consciente, que cometemos sabendo que estamos errados e temos a possibilidade de arrependermo-nos e pedimos perdão. O reino de Satanás promove a mentira do conceito, da ideia, da percepção. Esta é aquela mentira que entramos e nem percebemos, e nela vivemos, e nela acreditamos, como se verdade fosse, e nela empenhamos a nossa vida e a nossa esperança. Ficamos nela, como nos braços do capeta, sendo embalados, crendo, sinceramente, que seguimos bem, mas nos destruímos dia a dia.

A mentira conceitual é tão perniciosa exatamente porque ela não é percebida. E não é por não ser percebida que ela não iria fazer mal. Seu poder destruidor existe porque seus fundamentos são falsos, suas promessas não podem ser cumpridas, seus princípios são enganadores. Suave é ao homem o pão da mentira, mas depois a sua boca se encherá de cascalho (Pv 20.17). Quem vive esse tipo de mentira é conduzido a caminhos sem saída, a esperanças falsas que, mais cedo ou mais tarde, irão mostrar sua face. E a alma contaminada, além de não ter forças para se curar, na verdade já nem mais deseja isso, pois depois de algum tempo deixa de acreditar na própria enfermidade, crendo, sinceramente, que leva uma vida baseada na mais perfeita normalidade.

Nesse caso, para livrar alguém nesse estado, a única solução é aquela que Chesterton deu: tratar o indivíduo não como alguém que precisa de uma cura, mas que urge por um exorcismo!