quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Fidelidade

Uma das características de quem possui o Espírito Santo é a fidelidade. Por isso Paulo insere tal virtude naquilo que ele denomina “fruto do Espírito”. Isso significa, simplesmente, que aquele que verdadeiramente é espiritual, é fiel como conseqüência. Imediatamente, nos reportamos à fidelidade a Deus. Ao leitor religioso esta é uma ligação óbvia com o texto.
E aquele que assim pensa não poderia estar errado. Ser fiel a Deus é um requisito elementar de qualquer cristão. Quem o é, independente das circunstâncias, não O abandona, nem a Seus princípios, nem a Sua moral, muito menos à Sua verdade. Fidelidade é decidir-se por Ele, seguindo seus ensinamentos estritamente e, principalmente, não traindo-O em qualquer circunstância.

Para mim, no entanto, o sentido de fidelidade exposto na Palavra é mais abrangente. A característica de fidelidade é ali algo imanente ao ser. Não se refere apenas a ser fiel a, mas, unicamente, ser fiel. O homem fiel o é quase por natureza. Mas o que é a fidelidade sem o objeto a ser fiel? Nada, ou tudo, se este tudo representar não apenas uma escolha específica, mas um estado próprio do ser. O homem fiel não escolhe a que ser fiel, ele apenas o é. Fiel a Deus, mas não somente a Ele, aos homens também; à verdade, e à própria consciência. É certo que tudo se confunde, pois ser fiel à verdade é, de alguma maneira, ser fiel a Deus, e ser a Ele, de algum modo, conduz à fidelidade em relação aos homens, e assim vai... Essa fidelidade é quase não escolhida, mas puro reflexo de um ser restaurado, que possui uma nova natureza, que o conduz a isso. Escolher a quem ser fiel é prova de fidelidade ao sujeito. Agora, o homem fiel é fiel a tudo.

Mas se pode ser fiel a todas as coisas? Claro que não. Fidelidade, sendo uma virtude, apenas conduz o homem àquilo que é, no mínimo, tão valoroso quanto ela própria. Podemos falar em fidelidade à verdade, ao amor, à santidade, à consciência, aos homens (amizade, fraternidade) etc. Mas a fidelidade não pode nos filiar à mentira, ao erro, ao pecado, à impureza. Ser fiel a estes seria nos tornar infiel àqueles. Então, concluiríamos que o homem fiel não o é por inteiro, pois sendo fiel às virtudes, não o será em relação aos vícios. Porém, isto é um equívoco. Se usarmos a fórmula agostiniana da inexistência positiva do mal, mas, sim, da ausência do bem, ser fiel ao vício, na verdade, é apenas ser infiel em relação às virtudes. Não há fidelidade ao que não existe! Não é possível ser fiel ao erro, à mentira e à maldade. O homem que pratica essas coisas com regularidade apenas é um infiel aos princípios cristãos, à virtude e à verdade. Não penso como Jankelévich[1], para o qual a fidelidade pode ou não ser louvável, dependendo de ao que se é fiel. Creio a fidelidade ser uma virtude absoluta. Também creio não ser a fidelidade dependente do objeto passivo, mas como algo que existe no próprio ser ativo, apenas exteriorizado em relação às pessoas (ou às coisas) a quem é direcionada a fidelidade.

O fiel é estável, confiável e seguro. Não permuta suas convicções por qualquer prato de lentilhas. Mantém-se firme no que crê ser real, repelindo os assédios, ainda que sedutores, das idéias que o aviltam. Como o ouro, apenas sucumbe diante do fogo. Mas não qualquer brasa; somente o fogo da verdade, que queima as entranhas do fiel, pode fazê-lo substituir aquilo que antes era tido como verdade. Sendo fiel à verdade e não aos objetos em si, o que acontece não é a descoberta da falta da fidelidade anterior, mas a substituição do objeto. Mesmo no erro, o fiel é fiel. Numa excludente de culpa, o fiel que erra o faz sem saber, crendo, sinceramente, que segue a verdade. Ao ser confrontado com esta, percebe o seu erro, e, sem demora, corrige seu rumo. Porém, não é fácil convencer o fiel, pois ele não aceita qualquer argumento de palha. Ele é duro, insistente, defensor e guardião da verdade. Para demove-lo, apenas a face do real indubitável. É teimoso, então? Nada disso! Ele quer a verdade. Mas como ser fiel se permitir que qualquer vento a carregue? O fiel protege e apenas deixa voar aquilo que ele percebe que não possui mais a sua amada, ou seja, a verdade.

Por fim, o teimoso não é fiel, pois mesmo diante da verdade, insiste em manter-se no erro. O dogmático não é fiel, pois a doutrina o fascina, mesmo diante da verdade que a desmente. Também não são fiéis os fanáticos, que até morrem pelo seu deus, mas não pela Verdade, que é Deus.

Os fiéis amam a Deus, verdade absoluta, e os caudais que deste rio jorram os princípios e as virtudes disponíveis a todos os homens.





[1] citado por Sponville, André-Comte, no ‘Pequeno Tratado das Grandes Virtudes’