Quanto a tu, depositário da ortodoxia, guardião das chaves da hermenêutica e dos segredos da exegese, se conheces a verdade e sabes as profundezas das Escrituras, por que não atentas para os perigos de teu próprio entendimento? Te ufanas de tua fidelidade à doutrina, de teu zelo religioso e de seres amante da sã teologia e não percebes que teu conhecimento te enreda como a prostituta proverbial?
Amas a letra como um serviçal, te submetes a ela como um escravo e, por isso, não vês que há verdades mais profundas que se escondem além das primeiras aparências. Negas os símbolos, rechaças as alegorias e acaba por ser enganado por tuas rasas interpretações, que são nada mais do que ciência material.
Criticas a elasticidade de teus adversários, a ampliação de suas interpretações, mas tu mesmo reténs o espírito, sufocando-o na empáfia do querer tudo compreender, do acreditar que a existência está resolvida.
Não enxergas as complexidades da realidade, pois a tens toda nas tintas. Ignoras a experiência, repeles o miraculoso e achas que podes explicar cada manifestação segundo os modelos de teu imaginário peculiar.
És apologeta? Causídico da verdade? Então entendas que a verdade não é um prato pronto a ser devorado por ti, mas assemelha-se mais a uma bela donzela, que se esconde atrás de muitos arbustos e apenas se entregará em teus braços se fores insistente e devotado.
Tua justiça é severa, mas teu amor não é justo. Sabes bem condenar os que se atrevem a experimentar o elixir da heterodoxia, mas cala-te quando teus pares, sim, teus irmãos ortodoxos, vacilam ante as dificuldades. Ages assim como matilha, à caça da nova presa, mas jamais distingues os pecados dos teus.
Não percebes que a vida não está pronta, que há questões existenciais mal resolvidas, que o mundo não é cartesiano e que muitas respostas apenas podem ser encontradas, quando são, no interior do ser, onde o espírito humano se relaciona com o Espírito de Deus? Em tua sabedoria cansada, insistes em negar que, ainda hoje, Aquele que está acima de tudo pode agir de maneira que tua compreensão não alcança?
Lembra que Jesus não apenas repreendeu aqueles homens pelo desconhecimento das Escrituras, mas também por ignorarem o poder de Deus. E como conhecer esse poder se insistes em cercar a divindade em sebes minúsculas, nas quais cabem apenas tua fé anã e teu mesquinho conhecimento?
Além disso, não adianta saberes bem apontar o erro alheio, se em tua casa teus filhos caem porque não conseguem mais ver em ti a autoridade de quem não apenas sabe o escrito, mas conhece Deus na experiência.
Não sejas demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio. Por que te destruirias a ti mesmo?
As bordas da teologia II