segunda-feira, 26 de maio de 2008

O Fim da Lei é Cristo

Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê. Romanos 10.4

Um grande conflito há na mente de grande parte dos cristãos relativo à sua relação com o Antigo Testamento bíblico. Sentem-se eles inseguros; vacilantes na linha divisória entre a negação da prática do escrito e a aplicação irrestrita da lei mosaica. Ainda que tenham consciência que nenhuma das duas antagônicas posições pode ser irrestritamente encampada, resta-lhes a incerteza de qual é a posição correta neste assunto.

Podemos começar com a própria denominação que é dada aos pactos de Deus com o homem. A Velha e a Nova Aliança. Apenas por ela já temos uma indicação de uma separação. Se há o novo, o velho ficou para trás. Se há um novo pacto, isso significa que o pacto antigo, de alguma forma, foi substituído. Não haveria sentido em haver uma nova aliança sem a revogação da antiga. Do contrário, não seria uma nova, mas uma continuação da velha aliança. Porém, isso não resolve todo o problema, muito diferente, poderiam objetivar a possibilidade de uma nova aliança não revogar a antiga, mas, apenas, aperfeiçoá-la.

Gostaria de começar citando as palavras de Jesus Cristo, o personagem central de nossa discussão. Afinal, se há uma nova aliança, está se dá nele, a partir dele, por causa dele. Em Mateus 9.16 e 17, o mestre diz:

Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho; porque semelhante remendo tira parte do vestido, e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; do contrário se rebentam, derrama-se o vinho, e os odres se perdem; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam.


Cristo, ali, havia sido indagado do motivo de seus discípulos não jejuarem, como os de João Batista. A resposta dada por ele, no entanto, parece envolver mais do que simplesmente a questão do jejum. Jesus parece estar se referindo a um novo período na relação entre Deus e os homens. Alguma coisa estava mudando; algo na prática religiosa ao menos. Pelo menos é isso que Jesus parece dizer. Nessa passagem, claramente, ele faz referência de uma incompatibilidade ou, ao menos, inconveniência, da composição de algo novo com algo que já estava estabelecido. Segundo Ele, essa mistura não seria, no mínimo, satisfatória. Se Ele estava se referindo, exatamente, a uma nova aliança e a completa incompatibilidade com a antiga, isso vamos analisar melhor.

Aqueles que defendem que o Velho Testamento é absolutamente aplicável aos dias de hoje, apenas sendo aperfeiçoado por Jesus Cristo, costumam citar a passagem de Mateus 5.17 a 19, na qual está escrito, conforme Jesus expressou:

Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.

É compreensível, para o leitor neófito, ou ao leigo, interpretando apenas essa passagem sem atentar para todo o sistema salvífico criado por Deus, concluir que todos os preceitos e cerimoniais contidos na lei e nos profetas do Antigo Testamento (que é ao que Cristo se referia) devam ser cumpridos, ou melhor, praticados religiosamente da maneira como estão expressos. Bem, como eu disse, essa interpretação é compreensível àqueles que não possuem um conhecimento mais abrangente do plano de salvação de Deus. Porém, para aqueles que compreendem a verdade do Evangelho tal interpretação chega a beirar a apostasia.

O apóstolo Paulo, em Romanos 10.4, afirma que “...Cristo é o fim da lei para justificar a todo aquele que crê”. Considerando apenas essa passagem, parece haver um conflito evidente entre as palavras do apóstolo e a de Jesus Cristo. Aquele diz que Jesus é o fim da lei e o próprio Cristo afirma que veio cumprir a lei. Ora, como pode alguém que cumpre a lei ser, ao mesmo tempo, a abolição dessa mesma lei?

Quando Jesus fala que veio cumprir a lei isso pode estar se referindo, primeiramente, no sentido óbvio, que Ele veio cumprir os cerimoniais, os ritos e a lei do Antigo Testamento. Tal interpretação poderia ser feita, considerando que Cristo, realmente, na sua passagem terrena, como judeu que era, cumpriu muitos dos rituais religiosos previstos no Antigo Testamento. Apenas para citar: Mateus 8.4, João 7.10, Mateus 26.19. Porém, tal interpretação parece restrita demais para ser aplicada no contexto do sermão do monte, dentro do qual tais palavras foram proferidas. O ensinamento do mestre tinha a dimensão da história universal; abrangia não apenas aquele povo, mas toda a humanidade, de todos os tempos; chegava até o fim do mundo. Parece claro que Cristo estava enfatizando a eternidade das palavras do Senhor, sua aplicabilidade eterna, seu valor perene.

Uma segunda interpretação, que considero ainda mais restrita que a anterior, é que Jesus haveria dito aquilo apenas para não parecer um revolucionário, um herege. Apesar de poder haver algum conteúdo nesse sentido em suas palavras, não é este o objetivo principal delas. O que Jesus estava ali expressando era algo absolutamente verdadeiro. Era a expressão manifesta de uma realidade pura. Era o sentido de sua missão. Compreendamos!

Paulo falou que Jesus era o “fim da lei”. E que não nos percamos pela aparência da expressão. Fim, não significa, apenas, o término de algo, mas, além disso, o objetivo de alguma coisa. Por exemplo: o casamento tem o fim de unir perpetuamente duas pessoas. A finalidade do matrimônio é juntar um homem em uma mulher numa instituição familiar. Podemos dizer que esse é o seu fim, ou seja, sua finalidade. Podemos dizer, também, que determinado contrato, tem por fim a entrega de produtos a um determinado comerciante. O ato de entregar as mercadorias é o fim do contrato. Com a efetiva entrega, o contrato se resolve, não há mais razão de existir. Podemos dizer que o fim (finalidade) do contrato é a entrega, e que a ocorrência desta resulta no fim (término) do negócio jurídico. Veja como a mesma palavra ‘fim’ tem uma conotação um pouco mais ampla do que, simplesmente, a de término de algo. Numa linguagem coloquial não costumamos usar o termo ‘fim’ no sentido de finalidade, mas é um uso muito comum numa linguagem pouco mais formal.

Vamos percorrer um pouco mais pelas palavras da Bíblia para concluirmos este ponto. Gálatas 3.24 e 25 expressa:

“...a lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio”.

Aio era o criado particular encarregado da educação doméstica das crianças de famílias nobres. Paulo compara a lei mosaica a este professor. E diz mais: que vindo a fé, tal professor não tem mais ascendência sobre o seu antigo aluno. Se torna evidente, portanto, que o apóstolo afirma que os que vivem sob a Nova Aliança não mais estão sujeitos aos preceitos do Velho Testamento. Usando da mesma analogia bíblica, podemos dizer que o que nos ensinou o velho professor se mantém insculpido em nossas almas, porém não possui mais qualquer valor normativo. Como a obediência a um pai. Quando criança isso não é uma escolha: obedecemos, pois somos absolutamente dependentes dele. Na fase adulta, se ainda o obedecemos, isso se dá por uma decisão livre, por uma expressão da vontade individual. Mas isso não resolve completamente o nosso problema. Se encerrássemos o estudo por aqui poderíamos concluir que antes o homem cumpria os preceitos do Velho Testamento por determinação legal e hoje deve cumprir por decisão livre. Ocorre essa não é a interpretação correta dos textos citados e não é a nossa conclusão.

Os que são das obras da lei estão debaixo de maldição[1] e por ela ninguém será justificado[2], assim afirma Paulo. Apenas essas duas afirmações já servem para concluirmos que não há salvação pela lei. Não precisamos nos alongar nisso, afinal sabemos que a salvação vem por meio de Jesus Cristo, que morreu por todos, e oferece a vida eterna a todo aquele que nele crê[3]. Para o assunto abordado aqui neste estudo gostaria de enfatizar o aspecto mandamental da lei sobre nós, os quais vivem na época da graça. Concluímos que sendo um professor em nossa infância, como humanidade, poderíamos carregar os ensinamentos da Velha Aliança conosco, mesmo que não mais sob a tutela legal desse tutor. Mas isso pode facilmente conceder a possibilidade da necessidade da prática dos ritos e cerimoniais antigos, não mais como lei, mas como escolha religiosa. É claro que essa não é a conclusão que chegamos. E isso vamos resolver agora.

Paulo afirma, categoricamente, que aquele que tenta se justificar pela lei está decaído da graça[4]. Não há dúvida que há uma inconciliação entre as duas coisas. A justificação do homem, sua salvação, apenas pode ocorrer pela graça divina manifestada em Jesus Cristo. Qual o sentido, então, de guardar algum preceito do Velho Testamento? Se ele não justifica, se ele não salva, se ele é uma maldição, por que seguiríamos seus cerimoniais? Qual a razão disso? A resposta é dada pelo próprio apóstolo que diz que toda a lei se cumpre no mandamento: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo[5]. Essa afirmação paulina se coaduna perfeitamente com aquilo que Jesus já havia dado como resposta a um doutor da lei, quando disse que os dois maiores mandamentos eram “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças” e “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”[6]. Não farei aqui uma ode ao amor, pois não caberia neste conciso estudo. Porém, posso dizer que tanto Jesus Cristo, como seu apóstolo resumiram a verdade do Evangelho. O que eles querem dizer é que, para aqueles que vivem o amor verdadeiro, o qual tem dentro de si diversas manifestações como obediência, fidelidade, misericórdia etc., tudo o que está contido na lei é absolutamente desnecessário, pois o próprio amor conduzirá sua vida na direção da vontade de Deus. A Bíblia indica isso:

“...o fruto do Espírito é: o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o domínio próprio; contra estas coisas não há lei” (Gálatas 5.22-23) - (grifo meu).

Em Jesus Cristo foi inaugurada uma era absolutamente nova. Aquilo que era preceito legal, cumprido apenas por causa da coação penal, agora deveria ser cumprido observando a essência do que nela estava contida - o espírito da lei. O espírito da lei mosaica (sua essência) era ensinar os homens sobre Jesus Cristo, prepará-los para sua vinda, fazê-los compreender o plano de salvação. Até a vinda de Cristo, a lei nos ensinava sobre ele, após sua vinda, para que ela serviria? Se o espírito da lei (sua essência) é Jesus Cristo, sendo ele manifestado, é ele a quem devemos agora obediência, não mais à lei. A letra mata, mas o espírito vivifica[7]. Se obedecemos a lei, olhando apenas sua forma externa, estamos condenados; porém, se compreendemos sua essência (espírito) e vemos nela Jesus Cristo, somo justificados. O Velho Testamento é como o contrato firmado que tem por fim (finalidade) ensinar sobre o Messias. Aparecendo esse Messias, o contrato se resolve, não mais tendo utilidade, sendo apenas um registro, uma memória, uma prova. Resumindo: o amor é o cumprimento da lei[8].

Agora, essa ausência de lei não significa a completa libertinagem dos costumes. Aliás, o apóstolo Paulo precisou explicar isso em suas cartas. O ser humano tem muita dificuldade em compreender o império do amor. Não entende como Jesus pode ter enfatizado um reino que não tivesse regras a serem seguidas. O homem não consegue separar religião de regras, de imposições. Isso porque não compreende que na prática do amor verdadeiro reside um completo entendimento da vontade de Deus. Apenas no amor há obediência sincera, só no amor há santidade, nele apenas há fidelidade, somente nele se encontra humildade. A verdadeira religião é amar a Deus e aos homens e quem no amor vive não precisa ser julgado por lei alguma, afinal seus atos serão mais virtuosos, mais corretos e mais preciosos do que qualquer ordenamento legal pode prever. Não é o império dos sentidos e da vontade, é o império do amor. Não é relatividade da moral, mas a moral perfeita. Não é a anarquia, mas o governo de Cristo sobre nós. A lei existe para ordenar e pacificar os homens[9], mas se esses homens já estão ordenados pela força do amor de Deus, se já estão pacificados pela consciência de Cristo, que lei pode ser tão perfeita que ainda precise ser promulgada para eles?

Com esse entendimento podemos, agora, conciliar o que vimos no início deste estudo. Se Jesus veio cumprir a lei, o fez isso sendo ele mesmo o Messias. Se a lei, em tudo, apontava para Ele e preparava o povo para a sua vinda, Ele era o cumprimento dessa mesma lei. Não o que Ele fizesse ou praticasse, mas Ele mesmo, sua figura humana e divina que era o Messias esperado e profetizado pela lei e pelos profetas. Assim, era Ele o fim da lei. Finalidade única de todo o arcabouço de normas, ritos e cerimônias dadas no Velho Testamento. Nele se cumpre todo o prometido e esperado, finaliza o logro da lei. Dessa forma, da lei nada mais resta, a não ser o exemplo e a prova do pacto que se cumpriu.

Falando diretamente do Velho Testamento, podemos enxergá-lo como prova das coisas que haviam de vir e outras que ainda virão; instrumento do conhecimento da personalidade divina, naquilo que Deus se Deixou revelar; compreensão de uma moral eterna, imutável, que permanece no tempo[10]; preparação para a compreensão da vinda de Cristo, afinal, sem o Velho Testamento, o Novo Testamento é incompreensível; e, por fim, o registro da história humana em sua relação com Deus.

Gostaria de terminar este estudo transcrevendo um artigo meu chamado - O Governo do Símbolo e o Reino do Espírito, o qual fala sobre essa relação entre o Velho e o Novo Testamento:

O cristianismo é a religião do sentido real das coisas, e não da aparência. A Lei Mosaica era apenas o simbolismo do real[11]. Em Jesus, o real se manifesta por inteiro, sem mais a simbologia. Ora, para o homem que tem o encontro com o real, não convém regredir à aparência, não faz sentido. Enquanto o real é o reino do espírito, a aparência é o governo do símbolo, necessário como instrutor para o que havia de vir, mas sem mais função quando o que ele apontava se manifesta. Para o homem espiritual, que teve a seu favor o véu de acesso a Deus rasgado para todo sempre, o ritual é inócuo. Se ele ainda o pratica, só pode ser para a satisfação da carne mesmo[12], já que, espiritualmente, não possui mais efeito algum. Até parecem piedosos, mas não servem para nada!Hoje, se nos relacionamos com Deus, não mais é por meio dos símbolos que, de maneira incompleta, representavam a divindade. Esta relação é direta – espírito com Espírito. Então, e isso Paulo tenta alertar, não devemos aceitar o jugo da estética. O reino de Jesus não é estético, é conceitual (realístico).Santidade, obediência, pureza, amor, sabedoria não se encaixam no conceito de rituais simbológicos representativos do real. São princípios e virtudes reais mesmo. Não é possível ser santo apenas em aparência, nem sábio. Ou é ou não é. A aparência é do ritual, que pode tentar representar o real, mas nunca será o real. Então, quando Paulo fala que essas coisas possuem até aparência de virtude, ele está afirmando que jamais essas coisas serão virtude.
Até hoje as pessoas têm dificuldade de compreender isso. Como não se sentem capacitadas de alcançar a realidade, preferem manter-se na aparência. Até porque a aparência não pode ser julgada, por não possuir valor moral. Sendo apenas uma representação, a virtude que ela simboliza é que é passível de julgamento. Mantendo-se apenas no rito, o homem tenta, talvez inconscientemente, se eximir de responsabilidade. Ao ser retirado da segurança do ritual, o homem é desnudado por completo. E o que sobra? Sua essência. Aí, não adianta se contentar em parecer piedoso, é necessário o ser, de verdade”.


[1] Gálatas 3.10
[2] Gálatas 2.16
[3] João 3.16
[4] Gálatas 5.4
[5] Gálatas 5.14
[6] Mateus 22.36-40
[7] 2ª Coríntios 3.6
[8] Romanos 13.10
[9] 1ª Timóteo 1.8-10
[10] As leis morais de Deus não mudaram. O que Deus condenava antes continua condenando hoje. Porém, não podemos confundir os preceitos morais com as penas determinadas no Antigo Testamento. A execução da pena pode variar no tempo, devido às peculiaridades de cada época, o que não afeta em nada à compreensão da eternidade da moral divina.
[11] Hebreus 10.1
[12] Colossenses 2.16-23